segunda-feira, 26 de abril de 2010

Brasilia 50 anos







Dias antes de ser internado no Hospital Samaritano, no Rio, no fim de setembro, para a retirada da vesícula e de um tumor no cólon, o arquiteto de Brasília recebeu VEJA para dar sua versão do nascimento da cidade artificial.
Oscar Niemeyer, o homem que ensinou o concreto armado a voar, completará 102 anos no próximo dia 15 de dezembro, mas ainda é capaz de se assombrar quando recorda a aventura quase impossível da construção de Brasília. "Fico espantado", diz a VEJA, corpo miúdo engolido pela cadeira na sala dos fundos de seu escritório voltado para o mar de Copacabana, onde, devido à dor em uma vértebra fissurada, já não tem podido aparecer para trabalhar com a disciplina partidária que sempre marcou sua carreira. "O problema era erguer uma cidade em menos de cinco anos, então a minha parte era fazer uma arquitetura mais simples, mais fácil", lembra, sob o olhar de um Dom Quixote de sucata. Uma sombra de sorriso maroto passa por seu rosto vincado. "Mas não fiz nada disso. Por exemplo: as colunas do Alvorada podiam ser mais fáceis de construir, sem aquelas curvas. Mas foram elas que o mundo inteiro copiou."
Espanto é uma palavra-chave no discurso de Oscar, como o chamam amigos e colaboradores. Resume o efeito de beleza inesperada que toda boa arquitetura deve provocar, segundo a cartilha que ele conserva inalterada desde a juventude. A ideia é que "o sujeito pare e se espante". No caso de Brasília, diz, "a arquitetura de fantasia valeu a pena porque tornou a cidade mais conhecida", mas a mesma certeza já estava em sua cabeça quando projetou, no início dos anos 40, o curvilíneo conjunto da Pampulha por encomenda de Juscelino Kubitschek, então prefeito de Belo Horizonte. Niemeyer sempre enfatizou – e volta a enfatizar agora, por via das dúvidas – que na capital mineira foi plantada a semente da nova capital federal. O futuro presidente desenvolvimentista encontrara seu arquiteto. E seu arquiteto encontrara um estilo – para sempre.
O busto de Lenin sob uma das prateleiras arqueadas de livros que forram as paredes não é o único sinal de desafio ao tempo no ar do escritório, que Niemeyer continua perfumando com a fumaça de sua cigarrilha. "Uma coisa que eu noto quando olho para trás é que, quando comecei Brasília, eu pensava exatamente igual a hoje", diz, a voz baixa – mas ainda clara –, cheia de curvas e chiados cariocas. Essa resistência de concreto das ideias que o moldaram explica muita coisa, desde a coerência de sua obra ao longo de tantas décadas até o fato de que, entrevistado hoje, ele continua produzindo respostas – às vezes com as mesmas palavras – que já estavam em seu livro Minha Experiência em Brasília, lançado em 1961. Lá, como aqui, se encontram expressões-chave como "liberdade plástica", as curvas femininas como inspiração, imagens poéticas sobre "palácios suspensos, leves e brancos, nas noites sem fim do Planalto".
Foto: Paulo Vitale
Avesso a mudanças"Uma coisa que noto quando olho para trás é que, quando comecei Brasília, eu pensava exatamente igual a hoje", dizRio de Janeiro – 2009
Envelhecimento físico à parte, o homem mudou pouco. Tanto nas convicções políticas – continua fiel ao comunismo e admirador do ditador soviético Josef Stalin, que diz ter sido "demonizado pela mídia" – quanto na capacidade de se entusiasmar com o trabalho. É difícil mantê-lo interessado por muito tempo na conversa sobre uma cidade construída há meio século, mesmo sendo a cidade um caso provavelmente único na história de tela em branco entregue ao gênio de um arquiteto. Niemeyer vibra mais ao falar dos prédios oficiais que o governador mineiro Aécio Neves lhe encomendou, do teatro que está sendo erguido neste momento na cidade argentina de Rosario ou da praça "fantástica, monumental" que projetou para o governo do Cazaquistão. Não é por acaso que, após uma união de 76 anos com Annita, que morreu em 2004, ele se casou novamente há três anos com Vera Lúcia Cabreira, 62 anos, sua secretária desde 1992. Seu tempo de vida se dilata para abarcar uma filha, quatro netos, treze bisnetos e cinco trinetos, mas parece um presente sem fim.
Desse ponto de vista, entende-se que Brasília esteja "tão longe", como ele diz ao justificar uma de suas muitas lacunas de memória sobre os anos de 1956 a 1960. É possível que a distância seja uma metáfora daquela, geográfica, que quase o fez desistir da encomenda de JK ao pisar pela primeira vez na desolação poeirenta do Planalto Central. Nesse caso, porém, trata-se de uma distância medida no tempo e não no espaço. Nas palavras de Niemeyer, os cinquenta anos da capital do país ora se espicham em "oitenta", ora sofrem um abatimento para virar "quarenta, sei lá". Não se trata de falta de lucidez, mas de desapego a detalhes. Da experiência de Brasília ele preservou, como repetiu em centenas de entrevistas, o prazer da convivência com os amigos que levou consigo – "nem todos arquitetos, alguns só para a gente poder conversar e esquecer a arquitetura" – e os animados saraus promovidos por JK ao som do violão de Dilermando Reis.
Mas guardou sobretudo a sensação de ter vivido uma utopia igualitária, morando nas mesmas casas geminadas dos operários e comendo ao lado deles no mesmo restaurante, "como uma grande família, sem preconceitos nem desigualdades". Pronta a cidade, registrou em Minha Experiência... sua decepção com o fim do sonho: "Agora tudo mudou, e sentimos que a vaidade e o egoísmo aqui estão presentes e que nós mesmos estamos voltando, pouco a pouco, aos hábitos e preconceitos da burguesia que tanto detestamos".
Foto: Arquivo Público do Distrito Federal
MAQUETEO arquiteto no escritório da Novacap vislumbra a cidade que começa a nascerBrasília – c. 1957/1960
Antes do choque de realidade, contudo, houve tempo de escrever um épico. "Era aquele sol, a terra vazia e cheia de poeira. Tínhamos de tomar banho de manhã e à noite. Era uma coisa radical", recorda. Coube ao arquiteto escolher – ou algum verbo semelhante que inclua uma dose de aleatório, como seria de esperar em terreno quase desprovido de marcos e acidentes – o local onde seria fincado o Palácio da Alvorada, antes de existir o Plano Piloto, "com capim a nos bater nos joelhos". Os projetos saíam de sua prancheta diretamente para a mesa do calculista, Joaquim Cardozo, e o próprio original seguia então para a obra. "Não havia programas", diz Niemeyer, referindo-se à falta de informações minimamente precisas sobre as construções que lhe cabia projetar. Na companhia de Israel Pinheiro, presidente da Novacap, visitava pessoalmente as instalações governamentais no Rio de Janeiro para contar salas, medir espaços – e depois multiplicar tudo por dois ou três. O que ainda seria pouco. "O Palácio do Planalto foi feito para 150 pessoas. Tem 600", diz. O clima de improviso não excluía questões financeiras. Niemeyer concebeu tudo o que Brasília tem de monumental recebendo um salário de funcionário público, mas, quando faltou dinheiro para construir o chamado Catetinho, a residência de madeira que abrigaria o presidente da República durante as obras, o próprio arquiteto e outros amigos de JK levantaram empréstimo num banco.
Foto: Arquivo do Memorial JK
ARQUITETO OFICIALCom JK, uma relação de pouca amizade mas muita confiança, desde os primeiros projetos da PampulhaBrasília – 1959


"Foi um período que me afastou de muita coisa", lembra. Seu pai, também chamado Oscar, morreu quando ele estava "no meio do deserto". Por questões de segurança, sua mulher, que ficou no Rio, deixou a Casa das Canoas, a bela residência de concreto e vidro que ele construíra no início dos anos 50 (hoje tombada pelo Patrimônio Histórico e parte da Fundação Oscar Niemeyer), e se mudou para um apartamento. Avesso a viagens aéreas, o arquiteto sofreu um grave acidente de carro a caminho do Rio que o deixou preso "por um mês" a uma cama de hospital. Niemeyer parece levar em conta todo esse investimento pessoal quando, comentando a recente polêmica sobre o projeto da monumental Praça da Soberania, que a comunidade brasiliense rejeitou, declara magoado: "Eu achei que tinha o direito de fazer essa praça". O tombamento da capital do país o incomoda. "Se o Brasil fosse tombado, o prefeito Pereira Passos não teria feito essa avenida tão importante", diz, referindo-se à Rio Branco, artéria de inspiração parisiense rasgada no centro do Rio de Janeiro no início do século XX. "Tudo muda. Quando a água do polo derreter, o mar vai subir e todas as cidades litorâneas terão de ser modificadas", especula. A Praça da Soberania está na gaveta, mas o presente contínuo de Oscar Niemeyer ainda tem vista para o futuro.

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