Da revista carta maior
"Prisão de cinco cubanos nos EUA é uma farsa judicial"
O governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro (PT), acaba de retornar de Cuba, país que escolheu para uma viagem de férias de dez dias. Mas a viagem foi marcada também por uma série de contatos com dirigentes políticos cubanos. Em entrevista à Carta Maior, Tarso Genro fala sobre essas conversas, analisa as mudanças políticas e econômicas em curso na ilha e manifesta solidariedade aos cinco cubanos presos nos Estados Unidos, onde investigavam a articulação de atentados terroristas contra seu país.
Marco Aurélio Weissheimer
Porto Alegre - O governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro (PT), acaba de retornar de Cuba, país que escolheu para uma viagem de férias de dez dias - de 2 a 12 de janeiro. Mas a viagem de férias foi marcada também por uma série de contatos com dirigentes políticos cubanos. Tarso Genro pretende estreitar o relacionamento do Estado do Rio Grande do Sul com Cuba em áreas como produção de fármacos, engenharia institucional para resistência a catástrofes, produção de máquinas agrícolas e agricultura familiar.
Em entrevista à Carta Maior, o governador gaúcho fala sobre os contatos que manteve em Cuba e sobre as mudanças políticas e econômicas em curso na ilha. Tarso Genro acredita que Cuba está saindo da imobilidade que bloqueou, por largo tempo, seu sistema político e estagnou o desenvolvimento das suas forças produtivas. Ele aponta o bloqueio promovido pelos Estados Unidos como um dos principais fatores responsáveis por essa estagnação e manifesta solidariedade aos cinco cubanos presos em território norteamericano, quando investigavam atividades terroristas contra o país. As prisões, para o governador gaúcho e ex-ministro da Educação e da Justiça no governo Lula, são uma "farsa judicial."
Carta Maior: Quais foram os objetivos dessa viagem e os contatos mantidos na ilha. O governo do Rio Grande do Sul pretende estabelecer algum tipo de parceria com Cuba?
Tarso Genro: Estive em Cuba, na verdade, em férias, mas aproveitei para fazer contatos com o governo cubano e dirigentes políticos do país para informar-me sobre o estreitamento da colaboração do nosso governo estadual com Cuba , no terreno econômico, já que Cuba tem experiências que podem nos ajudar - por exemplo na produção fármacos e na engenharia institucional para resistência a catástrofes - e nós temos uma rica experiência, também como exemplo, na produção de máquinas agrícolas e na valorização da agricultura familiar.
O governo cubano, com as reformas que estão em curso, distribuiu 130 mil lotes de terra para agricultores, em usufruto, para que eles produzam alimentos e os levem ao mercado. A importação de alimentos por Cuba é um dos principais problemas para o desenvolvimento econômico da Ilha, que tem poucos recursos para investimentos em infraestrutura e logística, depois da queda da União Soviética que como se sabe proporcionava vultuosas ajudas ao povo cubano.
Carta Maior: Na sua opinião, quais são os obstáculos que ainda precisam ser superados para incrementar as relações comerciais com Cuba? O bloqueio promovido pelos EUA permanece sendo um entrave, mesmo para o Brasil?
Tarso Genro: Os governos americanos são contra qualquer ajuda e qualquer comércio com Cuba, porque ali, segundo alegam, não tem democracia. Enquanto isso negociam, o que aliás fazem muito bem, com a China e com qualquer país ditatorial da Ásia ou da África, desde que isso facilite os seus interesses comerciais e políticos, sobretudos petrolíferos. Ocupam países, inclusive, em nome destes interesses.
As ações terroristas desencadeadas contra Cuba, oriundas do território americano - feitas por exilados cubanos e cubano-americanos ligados às máfias de Miami, nas barbas das agências americanas ou até com a sua cumplicidade - constituíram um barbarismo atroz. E isso ocorreu depois do fim da “guerra fria” e depois que Cuba deixou de interferir apoiando ou estimulando ações revolucionárias na América Latina. Estabelecer relações de solidariedade com Cuba é, portanto, estimular o governo dos EUA a normalizar, também, as suas relações com aquela nação. O governo do Presidente Obama, na verdade, flexibilizou um pouco estas relações, que no governo Busch eram permanentemente agressivas e provocativas, mas ainda está longe de normalizá-las, como deveria ocorrer dentro dos mais elementares princípios do direito internacional.
Carta Maior: Para onde sinalizam, na sua opinião, as recentes mudanças anunciadas pelo governo cubano para dar um novo impulso à economia do país?
Tarso Genro: Cuba está iniciando uma transição, mas não tenho claro qual a sua profundidade e mesmo em direção a “quê”. Embora tenha tido muitos contatos institucionais com Cuba ao longo de sucessivos governos de que participei ou dirigi, seria muita arrogância da minha parte, e até uma infantilidade, fazer um “julgamento” daquele processo revolucionário, que é extremamente complexo, atípico e também “cercado” pelo bloqueio americano. Um processo que esteve permeado de erros acertos, mas que acabou devolvendo dignidade ao povo cubano e soberania política ao país. Julgá-lo negativamente seria como julgar negativamente a vitória do Norte, na Guerra da Secessão americana, por que o racismo continuou imperando no sul dos EUA até depois da metade do Século XX.
Tenho claro, porém, que Cuba está saindo da imobilidade que bloqueou, por largo tempo, seu sistema político e estagnou o desenvolvimento das suas forças produtivas. Tenho claro, também, que os democratas progressistas e a esquerda em geral devem ser solidários ao governo e ao povo cubano, nesta movimentação que estão iniciando, até porque muitas conquistas duramente obtidas neste período devem ser preservadas, como nas áreas da educação e da saúde pública,
Carta Maior: Essas mudanças podem ter algum impacto também na área dos direitos humanos, tema sensível e objeto de muitas críticas contra o governo cubano?
Tarso Genro: A questão democrática em Cuba não pode ser avaliada com os mesmos parâmetros que servem para o Brasil, para a Argentina e para o Uruguai, por exemplo. A questão dos “direitos humanos”, sim, porque estes são uma conquista supraterritorial e suprapolítca universal. Neste terreno Cuba começa a responder de uma maneira inclusive superior aos EUA, que mantém campos de tortura oficializados e não se abala com seus soldados, nas ocupações militares que faz, urinando sobre os inimigos mortos.
Cuba está libertando, seguidamente, prisioneiros políticos condenados dentro do seu regime jurídico, em nome da reinserção econômica e política plena do país, na comunidade internacional. Entendo que todos devemos apoiar estas decisões do governo cubano. A solidariedade com Cuba não exime ninguém de defender que se apliquem em todos os países - e obviamente também em Cuba - os princípios protetivos dos indivíduos e grupos sociais, atinentes aos direitos humanos. Mas isso também deve ser válido em relação aos Estados Unidos.
Os Estados Unidos mantém - depois de uma farsa judicial - cinco cubanos presos que ali estavam colhendo informações para abortar atentados terroristas contra o seu país e que causaram, em Cuba, inúmeras mortes, inclusive de turistas, como se lê no livro de Fernando Moraes ("Os últimos soldados da Guerra Fria", Companhia das Letras), recentemente publicado. Os Estados Unidos mantém, em seu território, livre, um terrrorista como Posada Carriles, cuja extradição está sendo pedida - não por ele ter participado uma luta armada contra Cuba como outros vários cubanos que estão lá “exilados” no território americano- mas por ter participado da preparação de um atentado terrorista com bombas, o que é muito diferente de ação armada direta para desestabilizar um regime. Foi um atentando com bombas contra um avião de passageiros, cubano, que vitimou 70 pessoas.
Carta Maior: Na sua opinião, como poderia ser definido hoje o regime político cubano e quais as perspectivas de mudança no curto prazo?
Tarso Genro: A questão democrática em Cuba é, efetivamente, uma questão pendente, mas deve ser lembrado que as transições democráticas que ocorreram aqui na América Latina só ocorreram promovendo um Estado de direito precário, depois um pouco mais aperfeiçoado, porque as lutas armadas contra as ditaduras, aqui, foram derrotadas. Lá a luta armada contra a ditadura de Batista foi vitoriosa. Aqui, as transições se deram com o apoio, principalmente nos seus aspectos mais precários, dos Estados Unidos que, naquela época tratava a América Latina como seu quintal político, apoiando na região todas as ditaduras mais sanguinárias e depois apoiando as transições “sob controle”. O regime cubano, portanto, formou-se no âmbito da “guerra fria”, com apoio soviético contra os Estados Unidos, que protegiam todos os regimes sanguinários da América Latina, escudados na luta contra o “comunismo”.
O “regime fechado” cubano é conseqüência, portanto, desta complexidade: um país antimperialista, que pretende promover um regime socialista, isolado inclusive dos seus antigos pilares econômicos, como era o regime soviético e assediado - mesmo depois de ter deixado de promover e apoiar ações revolucionárias na América Latina - por ações violentas e boicotes econômicos do país mais poderoso do mundo, em termos econômicos e militares.
É entendimento pessoal meu, ainda que precário, que se o Presidente Obama otimizar a “flexibilização” do boicote e permitir que haja um fluxo normal de pessoas e mercadorias para Cuba isso oxigenará a economia e a política do país. Estimulará um processo de acumulação interno, em Cuba, público e privado, que ajudará os cubanos a encontrarem o seu caminho democrático específico e também os caminhos do desenvolvimento econômico e social que, na “era soviética”, eram extremamente significativos, comparativamente aos demais países latino-americanos.
Carta Maior: Nesta sua estada em Cuba, qual foi a impressão que ficou do cotidiano do povo cubano, do ambiente social na ilha?
Tarso Genro: O que a gente percebe, ainda que de forma empírica, é que o povo cubano é um povo musical e alegre, gosta dos brasileiros em especial e dos turistas, em geral, que trazem recursos e movimentação econômica para a Ilha. Enfrenta os problemas de sobrevivência de forma digna. É um povo irônico e afetivo, inclusive em relação aos seus dirigentes. Querem, agora, mais do que uma educação de qualidade e um bom regime de saúde pública. Querem mais: melhor alimentação e mais farta; melhor transporte; também comprar o seu “carrinho”, se possível.
Querem ainda a possibilidade de melhorar a sua habitação, viajar para fora do país e compartilhar com a América Latina. A continuidade, na minha opinião, da legitimidade popular da revolução depende disso, já que outras conquistas, como não ter, na Ilha, nenhuma criança abandonada dormindo na ruas ou sem alimentação - o que é uma grande conquista humanitária- já foi absorvida como “normal” no cotidiano dos cubanos.